25 de abril de 2009

Tarrafal

25 Abril 1974 - 25 Abril 2009

Tarrafal - Campo de Morte Lenta

Palavras de Joao Faria Borda (ja falecido), um homem que passou dezasseis anos e tres meses no Campo de Concentraçao que foi uma das mais sinistras criaçoes do regime a que a Revoluçao de 25 de Abril pôs termo.

"O campo de concentraçao era um rectangulo (cerca de 250m por 180) situado num dos sitios mais insalubres do arquipelago de Cabo Verde. Como alojamento existiam umas barracas de lona onde eram metidos cerca de 12 presos em cada uma. As casas de banho nao existiam. Havia apenas uns sanitarios – toscos muros de tijolo com uns buracos no chao e umas latas de gasolina para as necessidades. Como cozinha existia um telheiro com uns muros por onde a poeira entrava aos montes. Dois indígenas faziam a comida. A alimentaçao era péssima – havia ocasiões em que era necessario pôr bolas de algodao no nariz pois o cheiro da comida impedia que ela entrasse no estomago. Nao havia agua potável. Só existia água num poço a cerca de oitocentos metros do campo, água salobra que os presos transportavam em latas de gasolina. Mesmo assim era má e em pequena quantidade, nao chegando para a higiene. Tomava-se banho com um unico litro de agua despejada de uma lata onde eram feitos uns buracos para o efeito." "O primeiro director do Tarrafal foi Manuel Martins dos Reis, capitao gatuno e paranoico, vindo da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Este director "entretinha-se" a roubar as coisas que os familiares dos presos, com sacrifício, mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro da Marinha Internacional. Chegou mesmo a montar uma pseudo cantina onde vendia as coisas roubadas. Mal desembarcámos começámos imediatamente a trabalhar. Transportávamos pedras, sob vigilancia constante dos guardas. Em Cabo Verde, regiao de clima variavel, calhou chover bastante nesses anos. A lona das barracas apodreceu de tal maneira que lá dentro chovia como na rua e de manhã acordávamos com a cara negra da poeira que se pegava à humidade que sobre nós caía. As águas acumuladas formavam pantanos onde se desenvolviam mosquitos transmissores do paludismo. A saude de todos nós, presos, arruinava-se. Caíamos atacados da doença chamada biliose. Sem fornecimento de medicamentos e com um médico que era um patife da pior espécie, em poucos dias morreram sete camaradas. Em cerca de uma média de 200 presos era vulgar, em certas alturas, apenas dez andarem a pé." "Os escandalos da actuaçao do primeiro director levaram à demissao deste. Foi substituído por Joao da Silva, acompanhado pelo fascista Seixas. Estávamos em 1938/39. A guerra civil espanhola terminava com a vitória do fascismo. O ditador português Salazar tinha contribuído, apoiando com o envio de géneros alimentícios e de homens, os quais ficaram conhecidos pelos Viriatos. Hitler tinha subido ao poder em 1933. Na Itália existia Mussolini. A situação no campo do Tarrafal, reflexo da situação política internacional caracterizada pela ascensão do fascismo, agrava-se terrivelmente. João da Silva dizia frequentemente: "Quem está aqui é para morrer!" Com este director começou a funcionar sistematicamente a célebre tortura conhecida por "frigideira". Todos os dias eram para lá atirados presos e eu também por lá passei algumas vezes."



"O Tarrafal é uma prisão política que temos de pôr ao lado de Aljube, Peniche, Caxias, Angra do Heroísmo. Não foram só os presos do Tarrafal que sofreram mas sim milhares de antifascistas vítimas das prisões por onde passaram. Mas o Tarrafal tinha um aspecto mais duro e violento: o isolamento. Os presos estavam meses e meses sem receber correspondência. Devido a ter participado numa tentativa de fuga colectiva em 2 de Agosto de 1937, a qual falhou por razões imprevisíveis, fui castigado em seis meses sem correspondência. A minha mãe morreu em Julho mas só vim a sabê-lo em Novembro, passados portanto mais de quatro meses." "Todos os directores do Tarrafal, embora com características diferentes, tinham algo em comum: todos eram carcereiros e agentes do fascismo. Conheciam as técnicas nazis e usavam-nas. João da Silva usava uma técnica frequentemente: fazer promessas junto dos presos menos preparados, enquanto paralelamente redobrava a violência junto dos mais firmes. Todos os directores do Tarrafal procuraram reduzir, com mais ou menos intensidade consoante a situação política nacional e internacional, a capacidade de luta dos presos. Nenhum deles estava interessado em que estes fossem restituídos à liberdade. Todos pretendiam a aniquilação física e política dos homens que torturavam. Mas não o conseguiram."



"A "frigideira" era um paralelepípedo dividido ao meio, com proporções para conter dois homens. Mas, em caso de grandes castigos, chegavam a meter lá dez. Como respiradouros existia apenas uma fresta em cima e cinco buraquinhos do tamanho da ponta de um dedo na porta de ferros. Aquecendo extraordinariamente durante as horas do calor, a "frigideira" arrefecia bruscamente com a cacimba, à noite. Descalços e apenas com o fato de caqui, os presos suavam abundantemente durante o dia e tremiam de frio durante a noite. A alimentação, nessas alturas de castigo, piorava: em dias alternados os presos comiam pão e água ou um caldo quente onde só raramente bailavam alguns grãos de arroz. Quando os presos saíam, enfraquecidos, da "frigideira" eram atirados para o trabalho mais violento. Entre esses ficou célebre o trabalho a que o fascista Seixas apelidou de "brigada brava", pois excedia em muito a própria violência do trabalho normal. Não era permitido beber água ou urinar senão com autorização dos guardas. A brigada brava" começou com dezenas de presos mas terminou apenas com dois: eu e António Guerra da greve da Marinha Grande, em 18 de Janeiro de 1934. Para mim este trabalho era um choque não só físico como mental, de tal modo que não conseguia dormir durante a noite, obcecado com a ideia de que no outro dia tinha de voltar ao mesmo. Quando, negros e encharcados, regressávamos ao campo, os restantes camaradas, solidários, ajudávam-nos em tudo o que o regulamento permitia: lavavam- nos a roupa, guardavam para nós a melhor comida e animavam-nos moralmente."



Quem foi Joao Faria Borda

Joao Faria Borda, natural de Alcobaça, filho de um campones, nasceu a 18 de Novembro de 1912. Em 1932, então com 20 anos de idade, assentou praça na Armada, onde desenvolveu diversa actividade política. Como dirigente da ORA – Organização dos Revolucionários da Armada – participou, juntamente com outros anti-fascistas, na revolta dos navios de guerra "Bartolomeu Dias", "Afonso de Albuquerque" e "Dão", em Setembro de 1936, naquela que ficou conhecida como "A Revolta dos Marinheiros". Em consequencia dessa participaçao, depois de julgado em tribunal militar especial para crimes de natureza política e porque no tribunal assumiu a responsabilidade pela acção revolucionária praticada, foi condenado a vinte anos de prisão. Esteve uns dias na Penitenciária e foi, de seguida, enviado para o Tarrafal (tinha 23 anos), onde chegou a 29 de Outubro de 1936, com outros presos, entre eles nomes como Bento Gonçalves, secretário do Partido Comunista, Mário Castelhano, anarquista, Alfredo Caldeira, do Comité Central do PCP, e tantos outros. Faria Borda permaneceu dezasseis anos e três meses no campo de concentração. Depois de ter passado ainda mais um ano na cadeia de Peniche foi restituído à liberdade. Tinha então 41 anos de idade! Voltou ainda a ser preso em 1959/60 por actividade cooperativa.

Faleceu no Hospital Militar, em 1988 com 76 anos

(Tive a honra de o conhecer pessoalmente)

13 de abril de 2009

O sono do Tiago




O SONO DO TIAGO

O Tiago dorme... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o Tiago acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O Tiago seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O Tiago dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquele cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o Tiago acordar...

O Tiago dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu Irmão:
"Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir."

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
Tiago! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que Tiago... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o Tiago acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o Tiago acordar...

adaptado de O SONO DO JOÃO
António Nobre
(De: "Só")